domingo, 6 de novembro de 2011

Demônio Fideísta


É um absurdo o que se ouve ultimamente. Em nome da maldade, se pede qualquer coisa: "deixa eu passar no concurso, eu só quero pregar a mentira..."; "ah, eu não vim estudar, só vim aqui ensinar aos homenzinhos a maldade do Coisa Rúim". Olha só até onde chegamos: utilizam até meu desgraçado nome em vão! Para escândalo de muitos, divulgo um extrato de uma correspondência que recebi recentemente. Outras partes são impublicáveis, já que quase sugerem que eu seja bondoso e generoso (arghhh!!) para com este demoniozinho recém-concursado. Vamos lá, os destaques são meus:
Péssima noite, seu Coisa Rúim. Meu número no concurso é 616 e estive na última formação com o coordenador Asmodeus. Tenho uma vida muito dura, tenho família para alimentar e esse emprego é muito importante. Por isso, solicito a sua ajuda [...] No estágio da formação em que estamos, a quantidade de leitura é assustadora, seu Coisa Rúim. Não sei se sua desgracença sabe, mas tem um instrutor que está exigindo de nós a leitura de um tal Santo Tomás (sic!). Isso mesmo, temos que ler um santo para tentar os homenzinhos!!! Mas pastoral que é bom, ir até as ruas para pregar a palavra de sua desgracença, isso não. É cedo, dizem. Eu não entendo, seu Coisa Rúim. Estou preocupado porque nunca fui bom de ler e escrever. Tem mais: a gente tem que estudar francês, italiano, alemão e, pasme, latim! Latim, seu Coisa Rúim! Imagina... Onde é que a gente vai ensinar latim para o povo? Esses desgraçados homenzinhos mal entendem o português, que se dirá do latim, francês, etc. E eu pensando que para levar a má-fé às pessoas isso não era importante. Bastava ter um pouco de má vontade e pronto. Aliás, conheci não poucos espíritos ruins e até coordenadores de setor do inferno que nunca leram nada de Santo Tomás, não lembram palavra de latim, muito menos leem os textos que sua desgracença escreve, e são razoáveis divulgadores de sua má-fé. Eles até falam para nós, quando vamos trabalhar nas suas paróquias: "não é a razão que faz o homem se converter ao Coisa Rúim. Não caia nessa. Só a má-fé converte". A gente ouve esse pessoal mais antigo falando e pensa: é preciso mesmo ler e estudar tanto para ser demônio?? Escrevo a sua desgracença esperançoso de sua compreensão, e aguardando ansioso sua resposta.
Não me canso de ler e meditar a correspondência do 616. Ela representa o espírito de um grupo não pequeno de demônios que, apesar da resistência, possui premissas filosóficas muito fortes e precisas. E quanto mais reflito sobre esses dados explicitados pelo 616, mais me convenço de que a formação dos próximos tentadores precisa ser mais rigorosa. Mas, antes das questões teóricas, vejam como ele procura aproximar-me de sua dor, de seu sofrimento. O recruta conta sobre sua vida de família, sobre seus compromissos, sobre seus filhos até... Idiota! Você está no Inferno! O que espera encontrar aqui? Compaixão? Há, há, há. Tá difícil, tá demônio? Tá difícil??? Pede pra sair! Precisamos de pessoal comprometido aqui, capaz de ir até o Céu em busca de uma alma, até colocando em risco - se possível fosse - a sua própria danação.

Pessoal mole e descompromissado a gente tá dispensando. Está claro, recruta 616? E não me venha contar histórias tristes. Sua dor não me comove! Sua falta de formação demoníaca (por causa da desnutrição ou problemas familiares) não pode ser eternamente usada em favor de sua leniência. Aqui no Inferno não se vê apenas resultado, o esforço é prodigamente recompensado. Mas não se faça passar por dificuldade teórica o que é meramente preguiça! Repito: tá difícil?? Pede pra sair.

Reprodução
Quanto aos aspectos teóricos, o ponto mais controverso, e que precisa ser meditado por todos os recém-concursados, é que não é possível abdicar da racionalidade na pregação da má-fé (entenda-se má-fé neste texto como a postura pessoal contraposta a fé nEle, nunca como pensou Sartre). Por detrás das suas palavras, 616, está uma prática, felizmente minoritária, mas muito comum ainda, de que o fundamental para fazer o homem perder o Céu é a pastoral. O contato com o povo e as tentações, por si sós, seriam suficientes para fazer perder o homenzinho fedorento. O que o 616 não deve saber (pois confessou não ser demônio dado à leitura) é que esta postura não é nova. Outros demônios já explicitaram antes dele essa desconfiança na razão, tratando a má-fé como o principal motivo do abandono dEle: a tradição teológica deu a esse tipo de demonologia a alcunha de fideísta, pois tiravam da razão potência transformadora, atribuindo somente à má-fé este caráter. Mas a premissa de que o homenzinho fedorento responde melhor à má-fé que à razão já é filósofica, isto é, já pressupõe que é possível um conhecimento acerca da potência cognitiva do homem, a qual seria deficitária em relação à má-fé. Ora, onde estão as garantias de que a má-fé é mais perfeita do que a razão no que tange ao conhecimento dEle? Antes, a própria aceitação da preponderância da má-fé revela o aspecto universalizante e teórico, muito distante da pastoral desejada pelo 616. Os que pretendem ser fideístas, isto é, os que sustentam a má-fé como fundamento único das questões mais importantes da teologia precisam responder: se a razão é fraca, como entender a frase do Gênese, em que Ele afirma que "tudo era bom"? Ora, a razão também foi criada por Ele, logo não se pode menosprezar o caráter positivo da razão no trabalho da tentação. Algum demônio pode ficar confuso e perguntar: "mas não somos os pais da mentira? Se Ele fez a razão boa, que mintamos ao homem, que o convençamos que a razão é má. Esta é, afinal, nossa tarefa: mentir ao homem". Sim, façamos isso sempre. Convençamos o homem de que a razão é débil, que não se pode confiar em nenhum de seus raciocínios. Mas nós não podemos esquecer que ela não é má, não nos esqueçamos de que a razão não erra sempre. Se entendermos que a má-fé não é inimiga da racionalidade, poderemos aproveitar ainda mais a força da natureza humana contra ela mesma; se desprezarmos a força da razão, talvez não consigamos enganar tantos homenzinhos como poderíamos. Conhecer os textos de Santo Tomás, por exemplo, pode abrir atalhos para seduzir o homem, atalhos que a experiência e a observação levariam séculos para alcançar, como por exemplo sobre o tema ético da tristeza. O conhecimento do Aquinate faz com que saibamos que os remédios contra a tristeza são excelentes portas para todo tipo de vício, inclusive os da toxologia. Portanto, estudar os filósofos é sempre útil.
Outro ponto, 616, confie no Asmodeus. Ele sabe o que faz. Ele está comigo há muito tempo e muitas almas perdem a Ele por causa do descuido com a sensualidade. Se os homenzinhos fedorentos cuidassem mais dos olhos, do estômago e do orgulho - temas preferidos do Asmodeus - o nosso trabalho seria muito mais difícil.
Quanto a esse grupo de demônios que protestou contra a importância da filosofia na teologia, não confie neles. De fato, sua escola anda de mal a pior. Ela representa o espírito de uma certa demonologia que quer afastar-se da tradição de demonólogos. Como você mesmo disse, há alguns grandes (coordenadores, presidentes de comissões, assessores) que jamais leram os filósofos e nem minhas correspondências. Mas eles não são grandes por causa da negação à tradição de complementaridade entre má-fé e razão; nem é a resistência à hierarquia e à aceitação dos meus documentos que os trouxeram até onde estão. Pelo contrário, apesar de tudo isso, eles ainda são coordenadores. Quanto a você, 616, faz o que eu digo: fuja deste fideísmo barato, que ignora a liberdade humana. A desgraça, como diz o adágio, supõe a natureza. Uma natureza diligente, generosa, confiante, laboriosa, ordenada levantará mais empecilhos e dificuldades para a ação da má-fé do que uma natureza preguiçosa, desordenada, desconfiada, egoísta. Ou não é verdade que uma natureza mentirosa é já campo fértil para a maledicência, a calúnia, vícios nascentes da mentira natural? Ou que a lamúria, a inveja, a mentira são filhas naturais do egoísmo?
A desgraça supõe a natureza, 616. E em uma natureza preguiçosa só há espaço para uma preguiçosa má-fé. Mas se a natureza é diligente e laboriosa, a desgraça da má-fé é igualmente diligente e laboriosa, rendendo 3 ou 5 por 1.

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