É um absurdo o que se ouve ultimamente. Em nome da maldade, se pede qualquer coisa: "deixa eu passar no concurso, eu só quero pregar a mentira..."; "ah, eu não vim estudar, só vim aqui ensinar aos homenzinhos a maldade do Coisa Rúim". Olha só até onde chegamos: utilizam até meu desgraçado nome em vão! Para escândalo de muitos, divulgo um extrato de uma correspondência que recebi recentemente. Outras partes são impublicáveis, já que quase sugerem que eu seja bondoso e generoso (arghhh!!) para com este demoniozinho recém-concursado. Vamos lá, os destaques são meus:
Péssima noite, seu Coisa Rúim. Meu número no concurso é 616 e estive na última formação com o coordenador Asmodeus. Tenho uma vida muito dura, tenho família para alimentar e esse emprego é muito importante. Por isso, solicito a sua ajuda [...] No estágio da formação em que estamos, a quantidade de leitura é assustadora, seu Coisa Rúim. Não sei se sua desgracença sabe, mas tem um instrutor que está exigindo de nós a leitura de um tal Santo Tomás (sic!). Isso mesmo, temos que ler um santo para tentar os homenzinhos!!! Mas pastoral que é bom, ir até as ruas para pregar a palavra de sua desgracença, isso não. É cedo, dizem. Eu não entendo, seu Coisa Rúim. Estou preocupado porque nunca fui bom de ler e escrever. Tem mais: a gente tem que estudar francês, italiano, alemão e, pasme, latim! Latim, seu Coisa Rúim! Imagina... Onde é que a gente vai ensinar latim para o povo? Esses desgraçados homenzinhos mal entendem o português, que se dirá do latim, francês, etc. E eu pensando que para levar a má-fé às pessoas isso não era importante. Bastava ter um pouco de má vontade e pronto. Aliás, conheci não poucos espíritos ruins e até coordenadores de setor do inferno que nunca leram nada de Santo Tomás, não lembram palavra de latim, muito menos leem os textos que sua desgracença escreve, e são razoáveis divulgadores de sua má-fé. Eles até falam para nós, quando vamos trabalhar nas suas paróquias: "não é a razão que faz o homem se converter ao Coisa Rúim. Não caia nessa. Só a má-fé converte". A gente ouve esse pessoal mais antigo falando e pensa: é preciso mesmo ler e estudar tanto para ser demônio?? Escrevo a sua desgracença esperançoso de sua compreensão, e aguardando ansioso sua resposta.
Não me canso de ler e meditar a correspondência do 616. Ela representa o espírito de um grupo não pequeno de demônios que, apesar da resistência, possui premissas filosóficas muito fortes e precisas. E quanto mais reflito sobre esses dados explicitados pelo 616, mais me convenço de que a formação dos próximos tentadores precisa ser mais rigorosa. Mas, antes das questões teóricas, vejam como ele procura aproximar-me de sua dor, de seu sofrimento. O recruta conta sobre sua vida de família, sobre seus compromissos, sobre seus filhos até... Idiota! Você está no Inferno! O que espera encontrar aqui? Compaixão? Há, há, há. Tá difícil, tá demônio? Tá difícil??? Pede pra sair! Precisamos de pessoal comprometido aqui, capaz de ir até o Céu em busca de uma alma, até colocando em risco - se possível fosse - a sua própria danação.
Pessoal mole e descompromissado a gente tá dispensando. Está claro, recruta 616? E não me venha contar histórias tristes. Sua dor não me comove! Sua falta de formação demoníaca (por causa da desnutrição ou problemas familiares) não pode ser eternamente usada em favor de sua leniência. Aqui no Inferno não se vê apenas resultado, o esforço é prodigamente recompensado. Mas não se faça passar por dificuldade teórica o que é meramente preguiça! Repito: tá difícil?? Pede pra sair.
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Outro ponto, 616, confie no Asmodeus. Ele sabe o que faz. Ele está comigo há muito tempo e muitas almas perdem a Ele por causa do descuido com a sensualidade. Se os homenzinhos fedorentos cuidassem mais dos olhos, do estômago e do orgulho - temas preferidos do Asmodeus - o nosso trabalho seria muito mais difícil.
Quanto a esse grupo de demônios que protestou contra a importância da filosofia na teologia, não confie neles. De fato, sua escola anda de mal a pior. Ela representa o espírito de uma certa demonologia que quer afastar-se da tradição de demonólogos. Como você mesmo disse, há alguns grandes (coordenadores, presidentes de comissões, assessores) que jamais leram os filósofos e nem minhas correspondências. Mas eles não são grandes por causa da negação à tradição de complementaridade entre má-fé e razão; nem é a resistência à hierarquia e à aceitação dos meus documentos que os trouxeram até onde estão. Pelo contrário, apesar de tudo isso, eles ainda são coordenadores. Quanto a você, 616, faz o que eu digo: fuja deste fideísmo barato, que ignora a liberdade humana. A desgraça, como diz o adágio, supõe a natureza. Uma natureza diligente, generosa, confiante, laboriosa, ordenada levantará mais empecilhos e dificuldades para a ação da má-fé do que uma natureza preguiçosa, desordenada, desconfiada, egoísta. Ou não é verdade que uma natureza mentirosa é já campo fértil para a maledicência, a calúnia, vícios nascentes da mentira natural? Ou que a lamúria, a inveja, a mentira são filhas naturais do egoísmo?
A desgraça supõe a natureza, 616. E em uma natureza preguiçosa só há espaço para uma preguiçosa má-fé. Mas se a natureza é diligente e laboriosa, a desgraça da má-fé é igualmente diligente e laboriosa, rendendo 3 ou 5 por 1.
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